sexta-feira, 31 de agosto de 2007

INTERDISCIPLINARIDADE IV

O gato que anda sozinho
[George Gusdorf]
parte IV

 
—Projecto da ciência do homem—


(...) A rememoração do devir da cultura ocidental forneceria uma demonstração da solidariedade orgânica entre todos os compartimentos das ciências que habitualmente se nos apresentam em estado de dispersão, cada um perseguindo a sua aventura sem se preocupar com os outros. Mas trata-se de uma ilusão de óptica, uma vez que os sábios reunidos numa mesma época partilham os costumes intelectuais e espirituais do seu tempo, e comungam no reconhecimento dos mesmos valores. Só os espíritos estreitos permanecem prisioneiros de uma perspectiva epistemológica estritamente definida. (...) Aristóteles deixou-nos o panorama do saber do seu tempo. O metafísico Leibniz, um dos grandes nomes da Filosofia, é também um génio matemático, e ainda um historiador, um filólogo e um investigador em mineralogia. O filósofo Kant inscreveu-se na história da Geografia e na da Antropologia. Poderíamos multiplicar os exemplos da polivalência dos grandes espíritos, capazes de parecer, com Leonardo Da Vinci, um uomo universale (...). Em meados do século XX, existiam muitas histórias das ciências, mas cada uma delas beneficiava de uma genealogia independente. As matemáticas formavam um grupo à parte, assim como a Astronomia ou a Física, sem se preocuparem com o que, no mesmo momento, faziam os seus vizinhos. (...) Nenhuma ciência é isolável de todas as outras. (...) Cada uma das disciplinas só encontra a sua verdadeira e plena significação em função de todas as outras, e na perspectiva de uma ciência do homem, geral e unitária. Conclusão desesperante: para bem compreender o presente e o passado de uma disciplina, seria necessário conhecer a situação correspondente de todas as outras. É por isso que o projecto de realizar uma história solidária das ciências humanas se assemelha ao programa de construção de uma torre de Babel. Obra irrealizável, pelo que não é difícil compreender que nunca tenha sido tentada. As ciências de cada época estão ligadas às artes, à religião, à filosofia, ao estilo de vida no seu conjunto, na unidade de um mesmo contexto cultural. Cada acontecimento do conhecimento expõe um advento da consciência e um alargamento do horizonte humano. (...) Para falar convenientemente sobre o que me propunha, teria sido necessário ser especialista de todas as especialidades (...). Pensei, consciente das minhas limitações e lacunas, que era preciso correr o risco de tentar o que ninguém tinha tentado (...). A “Introdução Às Ciências Humanas” (1960) propunha o esboço de um tratado de história e de epistemologia do homem pelo homem na tradição do Ocidente. (...) Empreendimento escandaloso e presunçoso. A exigência interdisciplinar suscita um pensamento que tudo apaga para tudo recomeçar, sem respeito pelas posições tomadas nem pelas vantagens adquiridas, sobre um terreno livre de toda e qualquer hipoteca. O que antes de mais justifica as resistências de todas as pessoas envolvidas, ciosas na defesa do seu dominiozinho contra a incursão do invasor. Seria preciso homens novos para explorar um novo espaço do conhecimento. Não se pode contar com os sábios, nem com as equipas existentes para renovar o que quer que seja. Eles contentam-se com travar lutas de influência de tipo feudal, em favor das quais cada um se esforça por se apropriar da fatia mais gorda do bolo (...). Se queremos escapar destas controvérsias fúteis, não podemos pensar em voltar a elas e recomeçar. O carácter distintivo de um pensamento interdisciplinar seria uma envergadura espiritual que recusa deixar-se fechar no horizonte estreito de uma qualquer especialização (...). O homem é o centro comum, o princípio do sentido primeiro no qual se enredam as significações mais diversas na reconciliação dos opostos e das contradições. O pressuposto comum a todas as variedades do conhecimento seria, portanto, uma antropologia fundamental, na qual comungariam, inevitavelmente, as inteligibilidades e as interpretações. Não se trata aqui de reprovar as metodologias particulares dos sábios indisciplinados. Eles devem desempenhar um salutar papel de censura e de justificação. (...) Terão por tarefa explorar o espaço interdisciplinar do qual os sábios de todos os tipos retiram os factos de que se ocupam. Cada ciência parte originalmente dele, e espera-se que, no final de contas, cada ciência a ele regresse; cada ciência brinca ao esconde-esconde com a realidade humana global da Antropologia Fundamental, que cada ciência se recusa considerar na sua integralidade porque coloca sobre os olhos a venda da sua epistemologia especializada. (...) O especialista não deixa nunca de ser um espírito pequeno; falta-lhe o sentido do humano. Ao não ser capaz de situar os resultados que obtém no contexto da humanidade plena, ele próprio é incapaz de os compreender; ao não saber o que procura, não sabe o que encontra. Ao pressuposto epistemológico da restrição do campo epistemológico, os novos investigadores deverão opor o pressuposto de um campo sem restrição. Esta revolução dos hábitos mentais deve evidentemente suscitar reacções violentas. Se o domínio da Antropologia Fundamental engloba tudo o que é humano, não é possível situar, nele, um ponto de partida nem um ponto de chegada. Ele oferece-se-nos sob a figura mística da esfera infinita cuja circunferência está em todo o lado e o centro em lado nenhum. Tudo se torna mais simples a partir do momento em que compreendemos que toda a parte do homem, deve, finalmente, regressar ao homem. É isso que põe em marcha uma pedagogia da unidade, fundada na revelação natural da unidade humana.

in "Interdisciplinaridade. Antologia", co-org. Olga Pombo, Henrique Guimarães e Teresa Levy, Campo das Letras, Porto, 2006.





segunda-feira, 27 de agosto de 2007

INTERDISCIPLINARIDADE III

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O gato que anda sozinho
[George Gusdorf]
parte III



—Universidade, Universalidade—





Todo o sistema de educação tem por finalidade a edificação do homem. Trata-se de conduzir as crianças e os adolescentes até à plena consciência da sua humanidade (...). Nas origens helénicas da tradição ocidental figura a noção de paideia, fundamento, através dos séculos, do humanismo clássico. Os gregos deixaram-nos igualmente a noção de enkuklios paideia, que a nossa palavra enciclopédia transcreve e que, na sua significação etimológica, quer dizer ensino circular. O círculo, forma perfeita, indica a necessidade de obrigar os alunos a fazer a volta completa dos conhecimentos disponíveis, reunidos na unidade de uma forma harmoniosa. Devemos à cultura medieval a instituição da universidade (...). A universidade é o centro da província pedagógica, o lugar próprio do conhecimento. Ora, a palavra universitas designa, antes de mais, universitas magistrorum ac scholarium, a reunião dos professores e dos alunos na prossecução em comum das actividades do espírito. Mas designa também universitas scientiarum, a comunidade das disciplinas na unidade de um mesmo saber, fundamento da cultura cuja invocação reúne professores e estudantes. A interdisciplinaridade, a exigência da unidade do saber, constitui a sede da universidade, a sua original razão de ser. Esta razão de ser foi perdida de vista pelos universitários modernos. O conhecimento unitário explodiu, fragmentou-se numa infinidade de "saberes" cujos especialistas, longe de colaborarem num grande desígnio comum, vivem sob um regime de concorrência e de inveja. A estreiteza de espírito repercute-se em cascata em todos os níveis do sistema educativo. O declínio das universidades, infiéis à sua missão, é assim uma das principais causas da crise universal do ensino. Dir-se-á, claro, que a imensa acumulação dos conhecimentos nos tempos modernos impõe aos interessados uma divisão do trabalho intelectual análoga à que prevalece no domínio da produção industrial. Ninguém pode saber tudo, e a especialização é uma doença incurável. (...) A explosão do saber humano, isto é, do espírito humano, é a contrapartida do desaparecimento da figura humana na arte e na civilização contemporâneas. Se a lógica da actividade parcelar se justifica pela fabricação em série de objectos de consumo corrente, não tem lugar na elaboração da cultura, que procura promover uma síntese da humanidade. Um sistema educativo digno desse nome só tem valor se assumir a sua função de ordenador do conhecimento, em virtude de um imperativo de convergência, em oposição a todos os imperativos de divergência em vigor no mundo actual. (...) No princípio de qualquer reforma do ensino deveria, portanto, existir uma mudança de mentalidade dos próprios professores (...). Cada professor da especialidade deve tomar consciência da missão que o incumbe de ser, simultaneamente, um revelador da totalidade. (...) O indispensável espírito de análise deveria ser completado e compensado pelo espírito de síntese, o desejo de evidenciar as articulações de conjunto do conhecimento.

in "Interdisciplinaridade. Antologia", co-org. Olga Pombo, Henrique Guimarães e Teresa Levy, Campo das Letras, Porto, 2006.